Feriado de Corpus Christi, data em que os católicos celebram a fé na eucaristia - ritual simbólico que repete a última ceia de Jesus com os apóstolos, segundo a Bíblia. Este ano, a data me trouxe uma recordação: a minha primeira, única e última eucaristia. Aos sete anos de idade, um grupo da igreja que funcionava ao lado da escola onde eu estudava foi preparar os alunos para a primeira eucaristia. Tínhamos "aulas" sobre a vida de Jesus e outras coisas que já não lembro mais. Obviamente as mães foram chamadas para autorizar a participação da criança e também ajudar nos preparativos.
A escola em que eu estudava era da rede estadual de ensino. Sim, eu estudei a vida inteira em escola pública, mas isto não é relevante agora. A maioria das crianças, incluindo eu, era de origem humilde e ainda assim no dia marcado várias meninas usavam trajes que mais pareciam vestidos de noivas sofisticados - cujos custos não devem ter sido baixos. A recomendação é de que estivéssemos de branco. Eu era gordinha (já falei que fui gordinha a vida toda?) e um pouco grande - desenvolvi rápido mas parei no 1,62 de altura aos 11 anos de idade. Sendo assim, minha mãe comprou um par de sapatos elegantes para mim (salto baixo, minha mãe sempre me vestiu como criança quando eu era criança) e uma saia bem simples. A blusa era emprestada de uma adulta. Pertencia à irmã da madrinha de meu irmão. Toda cheia de rendas, com detalhes bordados e uma manga imponente. Agora lembrei que eu já gostava de rendas com esta idade.... As meias eram finas, mas não lembro se minha mãe comprou ou se eram emprestadas também. Na cabeça, um discreto enfeite branco com flores amarelas (era mesmo discreto, não estou sendo irônica).
Lembro vagamente que a preparação durou algumas semanas. Minha mãe comprou o livro de catecismo que o pessoal da igreja vendia. Era pequeno, mas eu gostava dele porque contava a vida de Jesus e eu sempre gostei de história. Então, chega o dia da confissão. Era véspera da primeira comunhão, como o pessoal falava. Minha mãe me mandou levar o bendito livro para a igreja e ficar rezando até que me chamassem para a conversa com o padre. Assim o fiz. Quando chegou a minha vez de confessar os meus pecados e receber a minha penitência, deixei o livro no banco da igreja e fui conversar com o padre. Ele não estava no confessionário clássico que eu via nas novelas e filmes, mas apesar do estranhamento eu não perguntei nada. Ele fez perguntas como "você desobedeceu sua mãe e seu pai?" "você mentiu para sua mãe e seu pai?" "você deixou o dever de casa sem fazer?"
Respondi com sinceridade a tudo que ele perguntou. E então, ele olhou para mim e deu a penitência de rezar dez vezes o Pai Nosso e mais dez a Ave Maria. Minha ação foi olhar para a cara dele e perguntar com que autoridade ele me julgava se era tão pecador como eu. Para toda ação, uma reação. O padre ficou mais vermelho que morango e dobrou minha penitência. Ah, mas teve tréplica, amigos!!! Eu disse a ele que estava sofrendo retaliação e que rezaria minha penitência inicial. Não satisfeita, virei as costas e saí antes que ele dissesse qualquer coisa. Evidentemente eu não devo ter usado estas palavras, mas no auge do meu vocabulário de sete anos eu me expressei de forma clara e inequívoca. Furiosa da vida, voltei ao banco da igreja para rezar e qual não foi minha surpresa quando percebi que o meu livro de catecismo havia desaparecido. O que fazer nesta hora? Se você respondeu "chamar a mãe", acertou. Não encontramos o livro e isto me deixou ainda mais furiosa.
Rezei de qualquer forma a penitência que o padre me deu e voltei para casa parecendo o velho LP quando arranhava ou empenava e ficava tocando o mesmo trecho da canção toda hora. No mínimo umas duzentas vezes minha pobre mãe deve ter ouvido as minhas reclamações - tanto do furto do livro quanto do fato de o padre me julgar. Depois disso, calei. E pensei, pensei, pensei, pensei. Naquele momento, talvez, eu tenha tomado a primeira decisão importante da minha vida. Interrompi minha mãe no ritual sagrado de ver a novela e disse com toda a convicção do universo "eu só vou fazer esta comunhão porque você gastou dinheiro para comprar a roupa, mas vai ser a primeira, única e última porque eu não gosto desta igreja e não quero seguir nela". A forma como eu falei foi tão verdadeira e intensa que minha mãe mal conseguiu balbuciar um "está bem".
No dia seguinte, a eucaristia. A igreja lotada, dezenas de fotógrafos oferecendo os serviços, dezenas de familiares. Chovia um pouco e minha mãe levou meus sapatos para calçar na igreja. No caminho, foi ela quem parecia um LP arranhado com a cantiga "cuidado para não se sujar". Meus pais haviam se separado no ano anterior. Não lembro de meu pai na igreja, acho que ele não foi, mas a irmã e a mãe dele foram. Detalhe: eu não gostava nem um tiquinho delas. Quando as vi na igreja, fechei logo a cara, como se diz em Salvador (ficar séria, emburrada). Por alguma razão, fui escolhida para levar a Bíblia ao altar. O detalhe é que não me disseram exatamente o que fazer e não tinham feito ensaio com a gente. Eu quase saio correndo, mas a professora percebeu e falou no meu ouvido que eu andasse devagar. Em seguida veio a eucaristia propriamente dita. Também não nos ensaiaram em relação a isto e o que eu fiz? Quando a hóstia grudou no céu da boca eu meti o dedo para desgrudar. E foi só ela cair na língua para eu começar a mastigar. Minha mãe viu e as beatas da igreja também. Enquanto minha mãe questionava a razão de não terem me ensinado, as beatas faziam o mesmo em relação a ela. Havia um curso de catecismo, lembram? Não acho que competia às mães qualquer explicação sobre isso, elas sequer suspeitavam que não sabíamos.
Depois os momentos das fotos (eu estava na fase de mudança de dentição e em algumas poses tentei esconder isso, são as imagens que mais gosto). A irmã de meu pai reclamava que para o fotógrafo eu sorria e para ela não. Nunca consegui esconder que não gostava dela, mas também nunca me esforcei para isso. Não era uma antipatia gratuita, havia muita diferença de valores e princípios entre nós. Com a mãe de meu pai a mesma coisa. Até com meu pai era assim.
Já em casa, minha mãe falou comigo sobre eucaristia pela última vez. Começou uma conversa despretensiosamente falando que eu precisava repetir o simbolismo para aprender a "aceitar" a hóstia sem mastigar. Eu repeti, ainda com mais convicção que no dia anterior, que não voltaria a fazer isto porque não gostava da igreja católica. Desta vez, ela perguntou as razões. E eu respondi que as pessoas falavam uma coisa e faziam outra e que o padre nem me conhecia e me julgava com uma autoridade que eu achava que era somente de Deus e não dele. E ainda ameacei mastigar ou cuspir a hóstia se ela me obrigasse. Ela falou que obrigado não servia, que tinha que ser por vontade minha.
Já em casa, minha mãe falou comigo sobre eucaristia pela última vez. Começou uma conversa despretensiosamente falando que eu precisava repetir o simbolismo para aprender a "aceitar" a hóstia sem mastigar. Eu repeti, ainda com mais convicção que no dia anterior, que não voltaria a fazer isto porque não gostava da igreja católica. Desta vez, ela perguntou as razões. E eu respondi que as pessoas falavam uma coisa e faziam outra e que o padre nem me conhecia e me julgava com uma autoridade que eu achava que era somente de Deus e não dele. E ainda ameacei mastigar ou cuspir a hóstia se ela me obrigasse. Ela falou que obrigado não servia, que tinha que ser por vontade minha.
E foi assim que cresci em uma família católica, mas não tão praticante assim, discordando dos princípios da igreja. Depois de adulta, comecei a simpatizar com o espiritismo. Acho melhor que o catolicismo? Não, acho apenas diferente. Não há religião melhor ou pior, há a que você se identifica ou não se identifica. Nunca frequentei centro espirita, apesar de a vida toda ter ouvido que precisava desenvolver minha mediunidade. E, recentemente, comecei a questionar e não me identificar com o espiritismo também. Ateísmo? Não exatamente, mas percebi que nenhuma das religiões que conheci tem qualquer significado para mim. Acredito em outras coisas, na energia do universo, por exemplo. Respeito e entendo as opções de todos e acho que consigo não julgar na maioria das vezes. Afinal, foi justamente um julgamento que fez toda a diferença na minha concepção religiosa.