Eram quase quatro horas da manhã quando um cheiro estranho me fez acordar. Não conseguia identificar o que era, e não consegui voltar a dormir. O silêncio da madrugada torna todos os sons muito perceptíveis e assim eu ouvia uma espécie de estalo com uma certa frequência. Levantei e não demorei a descobrir que era a geladeira tentando ligar, mas sem êxito. A esta altura, a única coisa que eu podia fazer era esperar o dia clarear para adotar alguma providência.
Pouco depois das seis da manhã eu já estava pedindo a amigos (os que sei que acordam cedo), via mensagens pelo WhatsApp, o contato de algum técnico de refrigeração. Um deles perguntou se eu não tinha nenhum seguro e eu lembrei que sim! Liguei para a seguradora residencial e solicitei o reparo. Fui informada que só havia horários disponíveis para agendamento na quinta-feira. Expliquei que era uma emergência, que a geladeira estava repleta de alimentos (se não fosse assim não teria graça) e que quando começasse a perder temperatura tudo estragaria. O conceito de emergência da seguradora é diferente do meu. O máximo que me ofereceram foi agendamento para amanhã. Ainda não satisfazia a minha necessidade, que era de atendimento imediato.
Tentei a seguradora do automóvel e descobri que minha apólice não cobria reparo em eletrodomésticos. Já passam das sete horas da manhã. Decido não ir para a faculdade. De dentro da sala de aula eu certamente não resolveria o problema. Já passam alguns minutos das sete horas. Peço ajuda no grupo do condomínio do WhatsApp e dois vizinhos me indicam técnicos de refrigeração. Resolvo aguardar o horário comercial e pontualmente as oito eu mando mensagem para ambos. Resolvo pesquisar na internet um telefone de uma empresa especializada e encontro. Ligo para uma delas que anuncia que aceita todos os cartões (quem mais me salvaria com uma despesa extra não prevista no final do mês, além do crédito???). Esta empresa me atende, explico a urgência para a atendente e menos de uma hora depois meu interfone tocava anunciando a chegada do técnico. Ele deu o mais grave dos diagnósticos: motor!
A esta altura o WhatsApp já estava bombando de perguntas, palpites, sugestões, recomendações... Decidi fazer o serviço com a empresa mesmo com o "protesto" de alguns amigos que achavam melhor comprar uma geladeira nova. Eu não cogitei esta opção naquele momento. Nenhuma loja me entregaria o produto de imediato e geladeira não é algo que se guarde na bolsa e transporte facilmente, ou seja, o que resolveria meu problema era a substituição do motor (minha geladeira é antiga, tem motor ao invés de chip). Autorizei a execução do serviço e o técnico foi buscar as peças e material de trabalho. Voltou perto de meio-dia e terminou pouco depois das 14h.
Em duas horas, ele me contou toda a vida dele - enquanto trabalhava. É de Recife, está morando em Salvador há quatro meses. A empresa tem filiais em todo o Nordeste, por isto ele também já trabalhou em Fortaleza e Natal. Contou-me que, em Fortaleza, a primeira coisa que viu ao desembarcar na cidade foi um assalto. Em Salvador, viu um assalto na porta de casa, mas não no primeiro dia. Na cidade natal, já estava morando sozinho. Dois meses depois que mudou para a Capital baiana precisou voltar às pressas para Recife porque a casa onde morava foi arrombada e vários pertences levados. Em Salvador, mora em um apartamento com outros três colegas (todos da mesma empresa) mas prefere ir morar sozinho porque os companheiros são muito bagunceiros. Já alugou um lugar para ficar mas ainda não se mudou porque não comprou geladeira, fogão nem televisão. A televisão era a prioridade na compra, mas aí o celular quebrou e ele já não sabe o que fazer. A futura vizinha quer que ele mude logo porque quer companhia. Afinal, "morreu um morador há menos de um mês e ela tem medo de fantasmas".
Ainda fiquei sabendo que ele começou a trabalhar "muito novo" porque o pai mandava "para não ficar em casa sem fazer nada e pensando no que não presta". Tem um irmão e duas irmãs. Uma é solteira e farmacêutica. A outra é cassada e precisou abandonar a faculdade de Veterinária porque teve filhas gêmeas em uma primeira gravidez e outra com microcefalia (grave) na segunda gestação. Foi com o cunhado que ele aprendeu a fazer pão e trabalhou um tempo como padeiro. Depois, o cunhado mudou de profissão e ele também. Ajudante de caminhoneiro ( o cunhado), rodou Pernambuco de norte a sul e de leste a oeste. Providenciou a habilitação para dirigir caminhão mas não foi contratado. E seguiu em frente. Foi trabalhar na parte de açougue de uma grande rede de supermercados e ficou por aproximadamente um ano na empresa.
Então, entrou para o ramo da refrigeração. Saiu da primeira empresa onde trabalhou porque foi assediado pelo chefe. Na empresa atual está ha mais de três anos. Neste período foi pai de uma menina que nasceu prematura (seis meses) e viveu apenas uma semana. Depois disto, o relacionamento com a mãe da menina terminou. E ele não sabe se quer filhos, acha muito complicado criar nos dias de hoje.
O tempo ia passando, e mais confissões eu ouvia. Fiquei sabendo de um amigo dele que teve a perna amputada em um acidente de moto. A outra ocupante da moto, uma mulher, não sobreviveu. E foi assim que a esposa do rapaz ficou sabendo que ele tinha uma amante (a vítima fatal) mas perdoou e eles seguem juntos. O técnico de refrigeração não perdoaria uma traição...
Apesar de já ter sido padeiro, ele não gosta muito de pão. Prefere cuscuz, não troca por nada. E sabe fazer cuscuz. E pão também "de todos os tipos". E sabe fazer o "bolo de rolo" tão famoso da terra natal. Em Salvador, não teve coragem de comer o quitute mais conhecido da Capital da Bahia: o acarajé. Motivo? Medo de ter camarão na massa. Ele é alérgico. E se tiver que ir tomar remédio na veia no hospital vai ser um problema porque ele "morre de medo de injeção".
Torcedor do Náutico, também gosta do Carnaval de Pernambuco, mas quer conhecer o de Salvador porque "dizem que é maravilhoso". Gosta muito de relógios e ficou muito chateado porque as pessoas que invadiram a casa onde morava em Recife levarem três modelos de relógio que ele gosta muito. Levaram também as "roupas de marca", a televisão e o ar-condicionado. Este último ele recuperou. Soube que estava na casa de um homem e foi lá falar com ele. A princípio, o rapaz não quis devolver porque pagou por ele, mas quando se ameaçou chamar a polícia...
Sobre Salvador, ele acha algumas coisas mais caras e outras mais baratas que em Recife. Utiliza o aplicativo Waze para atender os chamados de visitas técnicas mas fica com medo de que os mapas o guiem para locais perigosos. Contou-me que foi a uma comunidade fazer um serviço e na saída da casa do cliente um homem apontou uma arma para ele e disse que estava quebrada e perguntou se ele consertava também. Como o homem riu, ele brincou também e saiu "o mais depressa possível".
Talvez eu tenha este dom de deixar as pessoas bastante à vontade. Elas acabam me contando muitas coisas pessoais. Depois do técnico de refrigeração de hoje eu só desejei que se for algo natural em mim que assim permaneça para que seja muito útil na carreira de psicóloga. O papo estava ótimo mas ele terminou o trabalho. No final da contas, o serviço foi bem feito, a geladeira voltou a funcionar perfeitamente. Recomendo a empresa e o técnico. Passaram no meu controle de qualidade.